“Muitas vezes, no tédio das férias, no calor e na solidão dos bairros desertos, encontrar um bom livro para ler torna-se um oásis, afastando-nos de outras escolhas que são nocivas. Na verdade, não faltam momentos de cansaço, irritação, desilusão, fracasso e, quando nem sequer na oração conseguimos encontrar o sossego da alma, pelo menos um bom livro ajuda-nos a enfrentar a tempestade, até que possamos ter um pouco mais de serenidade. Talvez essa leitura abra novos espaços interiores, capazes de evitar o encerramento naquelas poucas ideias obsessivas que nos enredam inexoravelmente. Antes da omnipresença dos media, das redes sociais, dos telemóveis e de outros dispositivos, esta era uma experiência frequente, e quem a viveu sabe bem do que estou a falar. Não se trata de algo ultrapassado.”, assim se refere o bispo de Roma e papa Francisco a todos os cristãos e cristãs, e todos os homens e mulheres de boa-vontade, em carta que era para ser escrita aos sacerdotes, mas que resolveu ser para todos e todas sobre o papel do livro e da literatura no período de férias. Curioso o período em que escreve “nem sequer na oração conseguimos encontrar o sossego da alma, mas pelo menos um bom livro ajuda-nos a enfrentar a tempestade”, como entendo, tantas vezes quando abrimos um livro e o estamos a ler, parece que não estamos a falar com Deus, ou seja, ler pode ser uma abertura à oração, e é, porque nos remete para um outro lugar e tempo que extravasa a nossa solidão e nos coloca nas mãos de alguma “coisa superior”, num “outro universo”, num “outro cosmos” e nos lança na utopia da poesia, que se encontra no centro da vida. Esta utopia que constrói a cidade, constrói os cidadãos e as cidadãs, modela-os por dentro, e é uma enriquecedora espiritualidade, uma conversa com o “livro”, mas, também, um diálogo profícuo com o nosso Deus, um “tu a tu”, uma relação de pensamentos, uma (re)construção da realidade, é, de facto, uma (re) ligação com o que cremos.
E fala-nos a carta como “enfrentar a tempestade”, a que se insere no nosso interior e aquela que é desenvolvida no nosso exterior. Tantas “tempestades” que o nosso mundo possui e que nos constitui “solipsistas” ou cristãos “de domingo”, ou então, homens e mulheres que pouco crédito dão à construção de uma cidade, de um país, de uma terra e de um cosmos, onde o Bem Viver seja a pérola das vidas comunitárias. E continua Francisco: “De certo modo,[ler um bom livro], reescreve-o, amplia-o com a sua imaginação, cria um mundo, usa as suas capacidades, a sua memória, os seus sonhos, a sua própria história cheia de dramatismo e simbolismo; e assim surge uma obra muito diferente daquela que o autor pretendia escrever. Uma obra literária é, portanto, um texto vivo e sempre fértil, capaz de falar de novo e de muitas maneiras, capaz de produzir uma síntese original com cada leitor que encontra. Este, enquanto lê, enriquece-se com o que recebe do autor, mas isso permite-lhe, ao mesmo tempo, fazer desabrochar a riqueza da sua própria pessoa, pois cada nova obra que lê renova e expande o seu universo pessoal.”, para que saibamos que ler é uma (re) construção do texto lido.
E depois, de inserir na sua carta uma crítica à formação dos sacerdotes que não ultrapassam a capacidade do desligamento com a sociedade, com a cidade onde vão trabalhar, movimentando-se com as “venenosas, superficiais e violentas fake news”, não dedicam tempo à leitura, escreve: “Perguntemo-nos: como será possível alcançar o núcleo das culturas antigas e novas se ignorarmos, descartarmos e/ou silenciarmos os símbolos, mensagens, criações e narrativas com que se captaram e se quiseram mostrar e evocar os seus feitos e ideais mais belos, tal como as suas violências, medos e paixões mais profundas? Como falar ao coração dos homens se ignorarmos, relegarmos ou não valorizarmos “essas palavras” com que quiseram manifestar e, porque não, revelar o drama do seu viver e sentir através de romances e poemas?”, refere-se à Igreja: “A missão eclesial deverá desenvolver toda a sua beleza, frescura e novidade no encontro com diversas culturas – e muitas vezes graças à literatura – nas quais se enraizar, sem medo de arriscar e de extrair o melhor daquilo que encontrou.”
“Todos devemos estar atentos para nunca perder de vista a “carne” de Jesus Cristo: aquela carne feita de paixões, emoções, sentimentos, histórias concretas, de mãos que tocam e curam, de olhares que libertam e encorajam, de hospitalidade, perdão, indignação, coragem, intrepidez; numa palavra, de amor. Mais ainda: prepara-nos para compreender e, assim, enfrentar as várias situações que podem surgir na vida. […] Ao ler, mergulhamos nas preocupações, nos dramas, nos perigos, nos medos de pessoas que acabaram por ultrapassar os desafios da vida, ou talvez, durante a leitura, demos às personagens conselhos que mais tarde nos servirão a nós mesmos.”
Uma carta a ler, porque se aprende no encorajamento cidadão de poder transformar a cidade, o nosso ser ontológico e aos cristãos e cristãs o “discernimento” de encontrar caminho.
Joaquim Armindo
Doutor em Ecologia a Saúde Ambiental