Os dias que vivemos são estranhos e revoltantes. Há pouco mais de três meses ninguém sabia da existência do vírus SARS-CoV-2. Agora, o vírus espalhou-se praticamente por todo o globo, tendo já infetado mais de 700.000 pessoas e provocando 34.000 mortes, sendo que destas mais de 20.000 são na Europa. A nossa vida e o nosso quotidiano mudaram por força de um inimigo invisível e desconhecido que afeta todos e não conhece nacionalidades, etnias, convicções ou condição económica. De um momento para o outro, o Homem – esse todo poderoso – perdeu a sua superioridade e torna-se praticamente impossível vislumbrar um fim para esta pandemia.
Até aqui construímos quase tudo o que havia para construir, chegámos onde nunca pensaríamos que fosse possível chegar, desenvolvemos fórmulas e ferramentas que mudaram por completo a nossa vida, alcançámos níveis de conforto e bem-estar nunca antes alcançados e, ainda assim, quando de um momento para o outro nos vê-mos atacados por um inimigo comum percebemos a fragilidade da nossa condição humana e comunitária.
O mundo global e em rede em que vivemos e o modo de vida frenético, desenfreado, cronometrado e narcisista (cada vez mais somos adeptos da “cultura do eu”) que adotamos, levaram a que o Homem assentasse a sua filosofia de vida num pragmatismo individual e egocêntrico.
A verdade é que quando o vírus chegou e expôs esta doença mundial que é o egoísmo. Eis a ironia: um mal a lutar conta outro mal.
No momento em que mais precisamos de solidariedade e espírito coletivo, muitos só nos conseguem retribuir o egoísmo e individualidade que coloca em risco a vida de todos. São os líderes mundiais com comportamentos inexplicáveis e obtusos: Bolsonaro diz que isto “é só uma gripezinha”, Trump tentou ter o exclusivo para os EUA de uma vacina contra o coronavírus e o Presidente da Bielorrússia, Alexsander Lukashenko, recusa implementar uma quarentena obrigatória no país afirmando que a “vodka e sauna podem curar do coronavírus”. São as pessoas que, por todo o mundo, deixando a irracionalidade toldar o seu pensamento, correm aos hipermercados esvaziando prateleiras e açambarcando tudo o que podem. Estas mesmas pessoas, infelizmente, ainda não perceberam que neste “jogo” somos a arma e o alvo a abater e seguem o dia-a-dia como se nada fosse, confundindo quarentena com férias: é o jogo de futebol no parque que não pode esperar, o passeio de carro “para apanhar ar”, o fim-de-semana junto ao mar que já estava marcado e o estabelecimento que insiste em permanecer aberto mesmo incumprindo com o estado de emergência decretado. É a perversão da nossa humanidade: a disposição natural que nos leva a fazer o bem e não o mal.
Esta nova normalidade – sempre repleta de incertezas, medos e angústias – mostra que estamos longe de ser perfeitos e desperta em mim diversas questões: Onde poderemos ter falhado enquanto sociedade? Construímos mesmo um mundo melhor? O que é a evolução da sociedade e até onde nos levou? Para onde vamos e com quem? Como será o mundo de amanhã?
Começo a cogitar sobre existência, conhecimento, razão, justiça e verdade.
Repentinamente, sou transportado para o pensamento filosófico e, como de costume, surgem demasiadas perguntas para tão poucas respostas.
Não sei se não as quero ver ou se não as quero dar. Não é o momento. Há algo que me perturba ainda mais.
Lembro-me dos médicos, dos farmacêuticos, dos enfermeiros e auxiliares. Lembro-me dos polícias, dos bombeiros e da proteção civil. Não consigo esquecer aqueles que todos os dias recolhem o lixo, aqueles que mantêm os serviços essenciais abertos e os que, dia após dia, procuram desenvolver uma vacina contra este maldito vírus.
Como é possível que estes homens e mulheres, mesmo sem saber quando, se e como é que a sua missão irá terminar, estejam lá todos os dias a dar tudo o que podem por nós e pela nossa vida?
A resposta só pode ser uma: eles são o nosso Sísifo.
No Mito de Sísifo, editado em 1942, Albert Camus recorre ao destino do herói grego Sísifo, que os Deuses condenaram ao tormento de empurrar uma pedra montanha acima. Pouco antes de chegar a rocha escapa-lhe das mãos e Sísifo tem de recomeçar a empurrar. O trabalho de Sísifo não conhecia fim, era sempre o mesmo; quando parecia já ter terminado, tinha de recomeçar desde o princípio.
No entanto, o homem encontra a sua felicidade numa atividade sem sentido. É a esta conclusão que chega Camus. A sublevação do homem consiste na aceitação as sua atividade sem sentido. O homem dá sentido à sua atividade na medida em que se dedica a essa atividade sem sentido e se entrega a ela.
É este o “Absurdismo” do filósofo francês que espelha o constante conflito entre o homem, que procura um sentido para tudo, e o mundo, que não tem qualquer sentido.
Em tempos de incerteza, medo e angústia não é imperativo encontrar um sentido para isto que nos parece tão absurdo, mas torna-se fundamental levar a esperança e felicidade para a nossa vida, pois ainda que sem sentido “a luta contra o cume pode encher um coração humano. É preciso imaginar Sísifo feliz”.
Bruno Bessa,
Presidente da JSD Maia
Advogado Estagiário